Tuesday, October 31, 2006

360 graus.

- Ruas, placas, avenidas, marginais. Tudo passa. Dinheiro, fama, sucesso, riqueza, pobreza...será que a minha vai passar? Percebo-me em um estágio de loucura e apatia social. No que diabos me tornei? - balbuciava Miranda, como um bêbado sem interlocutor.

- Disse alguma coisa, amigo? - Santiago olhou-o pelo retrovisor, assim que parou em frente a um sobrado verde claro de aparência antiga, cuja data de construção era talhadamente destacada por uma luz de 60 watts amarelada. "1912".

Miranda havia informado o número errado. Preferiu que o deixasse duas ruas antes, para que ele não soubesse onde era sua morada. De qualquer forma, o que adiantaria ele saber ou não? Não interessava. Estava mergulhando numa paranóia absoluta e incurável. Sentia aversão ao outro e não queria qualquer forma de contato afetivo. Por quanto tempo viveria como Nietzsche ou Schopenhauer?

- Obrigado. - Saiu do carro sem olhar pra trás. Miranda ficou parado em frente ao sobrado pegou as chaves no bolso, e fingiu que abria o cadeado. O carro de Santiago não se moveu. Miranda virou-se e foi até a janela do carona. - Qual o seu problema, cara? Deixe-me em paz. Acredito que já tive demais por essa noite. Agora vá que você vai acordar a minha avó doente fazendo esses cachorros latirem!

Santiago tragava um cigarro que acabara de acender e corou com a retórica de Miranda. Sentiu-se incomodado com a acrimônia de suas palavras e resolveu dar partida. Engatou a primeira marcha enquanto Miranda se virava para continuar sua farsa infantil.

Esperou o carro virar a esquina e começou a caminhada de duas ruas até a casa. Em meio a passos sem muita firmeza, Miranda devaneava sobre o seu dia e fazia um retrospecto desde o dia em que o seu pai havia morrido, até a clipagem de um aneurisma da mãe. - Quantas mortes! Pelo visto eu sou o próximo. - instintivamente olhou pra trás e procurou alguém e não viu nada, apenas gatos na espreita brincando de acasalar com seus uivos desafinados.

"Devemos encarar com tolerância toda loucura, fracasso e vício dos outros, sabendo que encaramos apenas nossas próprias loucuras, fracassos e vícios." - Repetiu essa frase de Schopenhauer quinze vezes durante todo o caminho, até colocar a chave na fechadura.

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Monday, October 30, 2006

quarto de milha.



Não sabia o significado, não entendia os acontecimentos. Refletindo enquanto as luzes da cidade traçavam formas desconexas em sua mente, Miranda ligou os pontos e supunha culpados, itinerantes à fortuna.

Voltou a si quando Santiago tossiu, livrando-o de seu transe: - Cof, Cof. Então, o que foi aquilo? Quem eram aqueles caras? Ladrões? Se foram é bom saber, pois estava pensando mesmo em sair daquelas bandas. Ademais, meu lucro estava zero por ali. - Parou no farol vermelho ao lado de um Mercedes azul escuro.

Miranda observou o taxímetro e tirou a carteira do bolso afim de checar quanto ainda tinha em posse. Viu que a quantia era semelhante ao custo da viagem até aquele momento, então resolveu pedir para parar sem respondê-lo - mesmo sabendo que só tinha andado seis quadras do incidente.

- Perdoe-me, senhor. Mas pode encostar na próxima esquina? - Pediu educadamente enquanto calculava a mistura de notas rasgadas e moedas de baixo valor. Santiago sentiu a pouca vontade de sustentar o assunto por parte do passageiro e reduziu a velocidade até parar.

Entregou com um punhado o dinheiro, e evitou o olhar nos olhos do motorista, justamente como fazia com os garçons. - Tome. Acho que é isso. - Santiago viu o estado do sujeito e sentiu dó de sua condição. Parecia se vestir bem, mas as roupas estavam sujas e um pouco surradas. Imaginou Miranda como um perdedor nos jogos de cavalo. Sua família dependendo de seu miserável salário para comer, enquanto ele apostava no "Trovoada" ou no "Mister Arrey".

- Não acredito que você more por aqui. Não há nada mais do que este posto de gasolina e aquele bordel para caminhoneiros. Estamos na entrada da cidade, longe do local onde você disse que mora. Pode deixar que eu te levo. Aproveite que eu estou de bom humor.

Nada disse, colocou a cabeça no encosto do banco e se contorceu como uma criança com frio, com medo e sozinha. Santiago observou-o pelo retrovisor e sustentou ainda mais a sua opinião sobre o apostador de cavalos, embora soubesse que não havia hipódromos na cidade.

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Friday, October 27, 2006

evasão.

Trocaram olhares por alguns segundos. Estudaram-se e esperaram para saber quem tomaria a iniciativa primeiro; o rato, com uma única possibilidade de escapar; ou o gato, que diferente da analogia corriqueira, carregava uma barra de ferro de quatro polegadas de espessura.

O rato viu as luzes dos carros refletirem na arma branca de seu perseguidor e não pensou duas vezes em puxar a maçaneta. Porém, antes de pensar, o gato atirou-se em um impulso feroz em direção a Miranda - que ao perceber a súbita movimentação do homem, de pele moura e cabelos encaracolados na altura do ombro, entrou no taxi e disse: - Bairro da Limeira. Rápido!

O motorista percebendo a situação de perigo levou sua mão à ignição e deu a partida enquanto a porta era fechada. Olhou rapidamente o retrovisor e aproveitou o sinal fechado alguns metros atrás. Mergulhou na primeira faixa da esquerda, para que o mouro não tivesse chances de detê-los.

Perdeu-se na tentativa de alcançá-los correndo e chegou à exaustão na falta de fôlego. Observou-os do meio da rua por alguns segundos até o carro sumir ao longe. Voltou para a calçada e encontrou com o primeiro par de pernas, e se esvaíram no primeiro beco umbroso atrás do poste.


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Thursday, October 26, 2006

cruzamentos.

Olhou-se no espelho com a boca cheia de espuma de pasta de dente. Terminou a escovação dos incisivos, caninos, molares, pré-molares, sisos - tinha os quatro: "juízo", diziam. Os cabelos
bagunçados precisavam de um corte. Uma franja rebelde, algumas espinhas dos tempos de adolescência - Remanescentes, logo passa... - e o rosto jovem não aparentando a idade que tem.

Terminou a escovação enquanto o sol estava se pondo. Passou pela cozinha, bebeu um copo de suco, comeu um sanduíche de pão integral com queijo branco e desligou o computador sem respeitar as medidas de segurança do sistema.

Saiu pela porta da frente, destrancou o cadeado e foi até a garagem. Ao redor, pôsteres de conjuntos de rock moderno, uma caixa de ferramentas bem organizada e um saco de areia para aliviar o estresse de vez em quando. Entrou no carro, limpou os farelos de pão, acomodou-se no banco de couro e ligou o automóvel vermelho com faixas publicitárias brancas nas laterais.

Foi calmamente pela cidade em busca de algum passageiro, mas nada encontrou. Pegava sempre o caminho contrário do fluxo geral até chegar ao seu ponto de partida.

Silêncio, pouco trânsito - às vezes nenhum-, calmaria, bandeira dois etc. Fatores que faziam do trabalho noturno algo mais agradável e rentável. Por mais que a mídia e os índices de violência dissessem o contrário, à noite para Santiago era uma forma de escapar das más notícias do dia e se interar antecipadamente das horrendas novidades de amanhã.

Estacionou o carro. Havia três companheiros na frente. Não demorou muito para aparecer alguém e o primeiro sair, logo após o segundo e o terceiro. Segundos após a partida do terceiro companheiro estava imerso em pensamentos quando ouviu um puxão na trava, uma maçaneta, alguém. Destravou as duas portas traseiras do modelo 2.0 e esperou a da direita abrir.

- Hora de trabalhar.

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“Não acredito no consórcio Itaú

Tuesday, October 24, 2006

sorte.



Caminhar apressado era inútil naquele momento, então resolveu correr. De qualquer forma, se ele fosse pego não seria devaneando como um personagem inocente de histórias infantis no bosque sombrio da floresta proibida.

Chegou até num beco sem saída - Maravilha! - resmungou desesperado. Foi tateando a parede até o final e logo percebeu uma luz sendo emitida de uma estreita passagem à direita, exatamente no momento em que seu perseguidor dobrava na entrada logo atrás. Entrou espremido, e quando estava no meio do caminho, percebeu que o primeiro par de pernas - um homem branco, com olhos castanhos, lábios opacos e cabelos negros que sobravam por debaixo da toca - ficou preso entre o pequeno espaço. - Pare! Pare aí! - ordenava com sua voz rouca.

Foi um dos poucos momentos que se orgulhava de seu físico esbelto. Passou boa parte da infância sendo motivo de chacota por ser mais encorpado que os amigos da sua idade, tanto que, frustrado com sua vaidade abalada, entrou na escolinha de futebol aos doze - incentivado pelo pai - e começou a praticar regularmente. Com o passar dos anos foi crescendo e perdendo peso até conquistar a sua forma física atual.

Chegou em uma avenida bem movimentada. Carros passavam rápido, não se importando com limite de velocidade estabelecido pelo Estado. Em frente, beirando a calçada onde estava, Miranda viu um ponto de táxi com um único carro parado - Puta merda! - disse pra si empolgado. Apressou-se para entrar e levou a mão à maçaneta do carona enquanto olhava para a esquina da direita e via o segundo par de pernas dobrando-a, à distância exata de cento e cinqüenta metros...

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Monday, October 23, 2006

fuga.

Cortou em ângulos aleatórios sua fuga por ruas espúrias e fez como se estivesse com uma pressa programada para evitar maiores alardes em ações precipitadas, naqueles minutos de tensão.

Estava completamente perdido em meio aquele labirinto de ruelas entre casas organicamente construídas. Sentiu falta de uma organização social prévia para uma fuga mais racionalmente inteligente ao invés de impulsos aleatórios imprecisos.

Entrou no terceiro beco à esquerda e cruzou com um varal improvisado e uma porta - com certeza a porta dos fundos de uma das casas do cortiço ao lado. Lançou-se em meio às roupas e carregou um lenço e uma ceroula xadrez em vermelho e cinza. Desfez-se das peças e tombou numa lata de lixo, cujo barulho acabara de denunciá-lo.

O som estava mais próximo e percebeu que agora era apenas um par.

Onde estaria o outro ?

Saturday, October 21, 2006

acompanhar.

Uma coruja parou em cima do poste e observou um corpo se movimentando no centro da rua. Como uma simples marionete do destino, Miranda brincava de fazer sombras com as luzes amareladas que o atingiam pelas laterais superiores.

Voando de poste em poste para acompanhar o distinto indivíduo, a coruja mudou-se para um na diagonal logo quando o homem adentrava um boteco esteticamente duvidoso e com um ar de poucos amigos - talvez nenhum, no caso de Miranda.

Um bolero lento tocava no jukebox. O cheiro de álcool e urina se misturavam em uma atmosfera única dando luz a uma combinação peculiar - porém deveras periódica para os visitantes assíduos do estabelecimento.

Comentários sussurrantes após entreolhados perseguiram Miranda nos instantes iniciais - sentia-se um alvo - e torceu-se para passar entre dois camaradas robustos que tomavam sua cerveja na santa paz até aquele momento. Aproximou-se mais do caixa e olhou os salgados no balcão de vidro.

Um osso protuberante saltava de uma carne assada bem passada e com aparência de dias, ovos coloridos, quibes ressecados, salgados fritados de diversos tipos pareciam menos ameaçadores naquele instante.

Pediu um ovo recheado e uma garrafa de soda pra fazer descer o montante de massa e albumina. Devorou com avidez, pagou com notas baixas e depois saiu apressado e sentiu que a coruja não era mais o único que o acompanhava...

Não acredito no consórcio Itaú

Thursday, October 19, 2006

síndrome.

Levantou a poeira durante os metros que se seguiram e dobrou a primeira esquina que viu. Correu como nunca havia corrido. Fazia tempo que não sentia tamanho terror. Era uma sensação descontrolada, como se tivesse sido dragado para uma onda densa de desespero.

Não chegou a ver o rosto do rapaz. Teria ele sido um bom ou mal aluno. Teria ele o confundido com outra pessoa? Bem ou mal, ele havia dito apenas "Professor", não disse nada mais que pudesse indicar precisamente a pessoa de Miranda.

Nada mais importava. Era a sombra de um passado não tão distante, porém gasta e conflitante, que resolveu reaparecer com sua culpa e moralismo incabível. Ele sabia que isso ia acontecer mais cedo ou mais tarde. Era inevitável, iminente, prestes a ocorrer em qualquer esquina, em qualquer lugar.

Não se importou mais com nada, se havia formado um bandido ou um doutor, e no final do quarteirão atrás do restaurante, procurou não mais cogitar a possibilidade de ter sido reconhecido por um ex-aluno.

Algumas coisas existem para serem esquecidas...

Não acredito no consórcio Itaú

Wednesday, October 18, 2006

molho.

Embora fizesse muito tempo que não fosse naquele lugar, Miranda sabia que havia um restaurante por perto. Desceu a rua da padaria - enquanto tirava a poeira do blazer - e dobrou a segunda à direita.

Logo na esquina avistou a casa verde clara de pintura impecável. "Genaro´s". Apalpou o bolso, retirou a carteira gasta de pano e contou o dinheiro na penumbra, entre o poste de luz e a caixa de correio branca. Percebeu que não tinha quase nada. Arrependeu-se de viver no ostracismo e lamentou o final da herança.

Olhou ao redor, viu uma pequena movimentação; olhou pra cima, viu o céu se fechando para ele, - Por que diabos as estrelas não brilhavam mais? Olhou o relógio de prata, e fez como se estivesse esperando alguém. Enquanto isso - naquela noite agradável- pessoas entravam com fome e saiam trazendo consigo satisfação e o cheiro delicioso de alho socado na panela, cebola, tomate... era o molho.

Até os dezessete esteve sempre presente nas reuniões dominicais na casa da avó - mãe de seu velho pai - que, assim como ele, morreu de câncer no fígado. Ainda quando menino, ficava ao lado da grande matriarca enquanto o almoço era preparado. Esperava sempre aquele descuido senil e, rapidamente, surrupiava algumas azeitonas que ainda não foram cortadas e voltava ao corre-corre com os primos.

De novo o relógio. Tic-tac. Mal tinha dinheiro pra comer... Pensou em pegar o coletivo e voltar pra casa. Ainda não! Alguma coisa ainda tinha que acontecer. Foi quando ouviu uma voz familiar indagar: - Professor?

Não acredito no consórcio Itaú

Tuesday, October 17, 2006

filhos.


A camisa de botão estava molhada de suor, o blazer preto de brim sujo de pó branco, e a calça jeans surrada já reunia alguns fiapos na barra, justamente onde era pisada pelo sapato preto de couro bem hidratado. - Devia ter ajustado o tamanho... - resmungou.

Miranda despertou meio tonto e limpou os olhos sujos de secreção solidificada. Estalou os ossos das costas, dos braços e esticou bem as pernas como se tivesse tido as melhores horas de sono de sua vida. Ao redor, ainda a praça, onde naquele momento pairava uma iluminação natural avermelhada do pôr do sol, que cruzava a parte de trás da igreja com muita delicadeza.

À esquerda da amendoeira via crianças com seus pais. Eles empurravam suas crias no balanço, que iam e vinham em velocidades diversas. Ficou imaginando a sua condição de pai. Nunca cogitou a idéia de semear um filho. Achava muita crueldade a idéia de por um ser num mundo tão violento e competitivo. Era capaz de seus filhos estarem prestando vestibular aos onze, e aos dezessete colocando-o num asilo para adultos falidos e surtados.
Apostila INSS 2011

Por mais que o estômago implorasse por qualquer pedaço de comida, Miranda ficou a observar um certo pai hipostasiado que invadia a infância do próprio filho com olhos de cobiça. Mergulhado na Terra do Nunca, o Peter Pan de quarenta anos desmontava por dentro ao ver
os seus sonhos de menino serem corroídos pelo tempo.

Levantou-se e saiu dali antes que o homem o percebesse.
Não acredito no consórcio Itaú

Monday, October 16, 2006

ataque.

O suco gástrico já estava corroendo seu corpo por dentro. A fome era visceral e implacável. Saiu de casa com meia baguete de pão com manteiga e um copo de leite morno - com açúcar. Alimentava-se geralmente dessa forma pela manhã, já que frutas e cereais nunca foram de sua predileção para começar o dia. Gostava de beber uma xícara cheia de café - sem açúcar - após o almoço, antes da sesta e após a sobremesa.

Miranda estava com as mãos meladas de sorvete seco, então achou sensato lavá-las fora da igreja. Fez uma reverência que julgou correto e saiu pela mesma porta que entrou. Cerrou os olhos para se proteger dos raios vívidos do sol e se acostumar com a claridade do dia lá fora.

Levou a mão direita à testa para poder enxergar melhor e foi descendo as escadas tão vagarosamente quanto havia subido. Sentiu um mal estar, sentou-se no degrau recém pintado, pôs a cabeça entre os joelhos e respirou fundo. - Novamente essa dor de cabeça! Ela vinha, dava uma ataque kamikaze sem pudores e depois permanecia uma dor mediana e intermitente, que se prolongava por uma hora ou duas.

Esperou mais um pouco embaixo do sol quente e se sentiu melhor para poder caminhar. Andou sem muito equilíbrio e passou por duas camélias que sussurram entre si: - Cedo, cedo já bêbado... pobre alma... - Passou pelas duas senhoras obesas com seus vestidos estampados e foi até o jardim do parque. Tateou um banco de praça vazio e sentou-se na sombra formada por uma amendoeira velha e imponente que estava logo atrás.

Sentiu uma vertigem aguda, arregalou os olhos e viu vultos numa realidade esparsa. Tentou lutar contra o peso de um sono avassalador - como se tivesse sem dormir há três dias. Sentiu que crianças brincavam de roda e outra gurizada rodava pião. Foi hipnotizado pela cantiga distante de vozes infantes e tombou pro lado.

Fez-se as trevas.

Saturday, October 14, 2006

dor.


Não chegava a ser medo, era uma relação de respeito bem fundamentada.

Quando ainda era um menino, Miranda recebeu educação eclesiástica em colégio de padre. Saiu logo depois de aprontar algumas poucas e boas. A idéia de enterrar as batinas dos padres e as vestimentas das madres em um fosso no terreno ao lado da escola fora uma pérola digna de expulsão, o que resultou na retirada do menino da instituição - mesmo que o pai achasse um grande erro.

Colocaram o guri em um colégio bilíngüe francês para que a educação enérgica ainda fosse mantida de alguma forma. Após meia dúzia de reguadas na mão, ele percebeu que afrontar o sistema não rendia muitas vantagens. Foi então que se tornou uma criança dissimulada e sonsa por adoção, metendo-se em menos encrencas e, de vez em quando, ainda ganhava alguns elogios por parte dos professores.

Essa primeira experiência do ginásio consolidou todo respeito que tinha em relação à igreja como instituição social. E diante daquela construção austera e imponente, cogitou mais uma vez a idéia de entrar e permanecer algum tempo lá dentro - já que o clima estava quente e o sol parecia não dar trégua naquele meio dia.

Subiu as escadas vagarosamente e lembrou das aulas de história na faculdade. Era uma verdadeira caça ao cristianismo. Os professores, céticos por natureza, subjugavam as conciliações e concessões da igreja para a morte de mais de 150 milhões de seres humanos na invasão luso-franco-espanhola na América Latina. O grande massacre do século XVI não chegou nem perto do número de mortos de todas as guerras que ocorreram nos últimos duzentos anos.

Lá dentro estava escuro. Se não fossem os raios de sol, que adentravam a capela através dos vitrais na lateral direita, estaria imerso em um breu nebuloso e assustador. As imagens dos santos e de Cristo pintados no teto eram maravilhosas, digna dos clássicos, o que fez Miranda abaixar a cabeça e pensar no verdadeiro sentido de tantas mortes, mentiras e sofrimento.

Imerso em pensamentos, ouviu gritos distantes e lacrimejou sem sentir...
Apostila INSS 2011

Não acredito no consórcio Itaú

Friday, October 13, 2006

fé.

Atravessou a praça, viu um sorveteiro e pensou em comprar um de chocolate com creme - sua mistura predileta - para refrescar, mas não achou sensato entrar numa igreja com a mão pingada de gordura hidrogenada e corante.

O sol amanhecera quente, tendo sua temperatura intensificada para o resto do dia, segundo a meteorologia. Achava-a interessante. A capacidade de prever os dias à frente era primitiva, tribal, porém muito perspicaz. Imaginava os índios fazendo-a sete séculos atrás, assim como os africanos, os persas, todos com a mesma maestria, mas cada qual com seu rito próprio.

Tinha mais fé na meteorologia no jornal da noite do que na religião. Na previsão do tempo não havia tantos mistérios, tantos gastos e nem tanto sofrimento. Era apenas acreditar, se ela estivesse errada - uma probabilidade às vezes remota - era só colocar um guarda-chuva na bolsa que o equívoco se transformava em astúcia própria.

Bem ou mal, já haviam matado Deus. Quanto à meteorologia...

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Thursday, October 12, 2006

ontem.

Gostava de conversar com Ataulfo. Ele tinha uma genialidade incomum, o que o tornava, quase sempre, o centro das atenções.

Não importava quantas pessoas estavam ao redor, o rapaz de cabelos curtos bem aparados e olhos castanhos brilhantes, sempre conquistava mais olhares e ouvidos do que todos na mesa.

Mas ontem havia sido diferente, por mais que ele gostasse da atenção incondicional dos outros. Ontem era apenas Miranda e Ataulfo se entreolhando a todo momento sem emitirem sons. Banhados na mortalha de um silêncio - rompido apenas com o abrir de garrafas, a emissão do gás e do cheiro suave de cevada - os dois entraram em um transe comunicativo único.

Embora muitos achem que comunicar precise, necessariamente, da oralidade grega - ou tipograficamente como em Gutenberg -, Shannon & Weaver afirmavam que: "todos os procedimentos que uma mente pode afetar a outra. Isto, obviamente, não envolve apenas o discurso oral e escrito, como também música, artes visuais, teatro, balé, e, certamente, todo comportamento humano."

Foi a conversa não-verbal mais comunicativa que tivera com seu amigo. A troca de olhares exemplificava uma reflexão densa e profunda, servindo para o entendimento próprio de si e da situação que se criara.

Adentrou a praça e viu uma belíssima construção eucarística logo em frente e colocou o ontem no ontem...

Wednesday, October 11, 2006

trauma 1.


Boa parte dos viajantes já havia descido em seus destinos e estariam agora, cada um, tomando conta de suas vidas da maneira que lhes cabiam melhor. Ele, não querendo fugir à exceção, levantou-se, tocou a sineta e parou ao lado do motorista e sussurrou sem jeito: - na praça, por favor. O motorista não ouviu o pedido do homem e deu a volta completa ao redor do parque, parando no local devido, na padaria, alguns passos da praça.

Essa dificuldade latente de encarar o outro nos olhos e falar com segurança era um abismo que o separava do comprometimento social vigente. Mas preferia fugir dessas indagações a ficar tentando buscar soluções dentro de teorias empíricas.

Os mais terríveis eram os garçons. Não conseguia dirigir uma única palavra inteligível - que não fossem os monossilábicos "sim" e "não" - na hora de fazer qualquer pedido. Geralmente, saia uma construção de difícil compreensão, fruto de um trauma sem explicação plausível.

Visualizou o bar de ontem, as conversas jogadas fora e a companhia cerimonial de um grande amigo - que tinha uma eloqüência invejável.

Tuesday, October 10, 2006

saudosismo.



Acordou com o solavanco das molas enferrujadas do amortecedor. O motorista viu a lombada tarde demais e freou bruscamente para evitar danos maiores. Os passageiros se incomodaram mas ele não. Resmungaram um protesto seco e depois se acomodaram em seus assentos.

Miranda sonhava algo sem pé nem cabeça e queria muito sair daquele universo surreal de caixas de fósforo dançantes. - "isso deve ter algum significado" balbuciou...
Olhou a janela, viu o mar e acompanhou o vôo rasante de uma gaivota que dançava com muita desenvoltura e graça naquela manhã de agosto.

Desviou o foco, sentiu um cheiro peculiar e procurou pelas proximidades, exatamente no instante em que a ave dava o seu bote crucial e arrendava a refeição do dia para as suas crias.
Mexeu-se pra frente e pra trás, ficou incomodado com o cheiro, e então percebeu que se tratava de um senhor - bastante grisalho - que descascava uma laranja lima com seu canivete gasto de bolso.

Lembrou do sítio, da terra, do mato, da infância...

Monday, October 09, 2006

decidir.

Cerrou as mãos logo que cruzou a esquina de casa.
As coisas estavam difíceis por ali, então foi procurar ajuda especializada.
Passou pela padaria, acenou meio tímido para um transeunte de velha data - um amigo de infância - e correu os olhos para poder atravessar a rua com segurança.

Andou mais dez minutos sem muita pressa de chegar, porém com o coração no destino.
Parou no ponto ônibus e leu as notícias do dia de forma superficial através do jornal do rapaz ao lado.

Lá vinha o ônibus e lá se foi a última solução pro país melhorar.

Pegou o coletivo sem muita fé no futuro da nação e passou pela roleta pagando em moedas.
Sentou no primeiro banco que viu, abriu um pouco a janela e sentiu o vento fresco da manhã nos cabelos encaracolados e adormecera trezentos metros depois.

Não acredito no consórcio Itaú